O olho precisa encontrar o olho do outro.
Olho no olho. O olhar estabelecendo a confiabilidade do diálogo. O olhar do outro é o alimento solidário para eu me pôr diante, de frente, encontrando a respiração do outro. Necessito do olhar, do olho do outro no meu olho.
Pouso suave, convidativo, deposito meu olhar no olhar do outro, sem pressa de retirá-lo, permanecendo, dizendo-me sob as palavras que vou pronunciando. Não preciso convencê-lo, preciso que ouça as palavras pronunciadas por mim e as junte, e lhes dê sentido, produzindo imagens reviradas em seus baús, em seus acervos pessoais. O olhar ajuda a dizer e, principalmente, ajuda a ouvir. Os olhos ajudam a buscar significado nos guardados do coração: apóiam a escolha, recolhem a preferência, extraem o sufocado, dissolvem o velado, desentopem o ajustado, desarrumam para enxergar e ordenar o belo e o distraído. Olhar no olho do outro é sublinhar o narrador, é destampar o vivido, é tornar possível, é possibilitar o percurso e os atalhos, é estender o plausível a extremos tensionadores de descobertas, é romper o conformado, é desejar o não experimentado, é chorar de ver.
Eu preciso contar no encontro, no olhar receptor e indagador. Gosto de narrar com os olhos percorrendo as dúvidas do olhar do outro. Vou narrando, dando voz às palavras para olhos que desvendam, numa cumplicidade que pede, que oferece, que flexibiliza a certeza. Dizer-me e saber-se do outro na simultaneidade da revelação de um conflito, de um afeto, de um desfecho. O olhar é o convite para ver juntos, ajustados, sintonizados, sincronizados. Olhar o olhar é perceber a diferença, é desconfiar para processar e discernir o que guardar. É necessário sentir o vácuo do olhar, a pausa, o silêncio e a explosão.
A voz com o olhar, partilhando horizontes em dores escuras, sombras de desencontros, desilusões profundas e achados iluminados. Olhando o olhar do outro, ouvindo o que vou desvelando, em territórios de pisos poéticos, olho-me como um semelhante singular no alumbramento do belo, na indignação do injusto, na aproximação das paixões. Só posso contar uma história encontrando o olhar do outro; para minha voz poder repercutir; tomar dimensão.
Preste atenção nisso, meu neto, que servirá para vários momentos de sua vida, para contar histórias, para discursar, para liderar, para se defender, para se fazer presente, para conquistar e para se pôr com distinção, tem que encontrar o olhar do outro. Preste atenção, meu neto! Sim, vovô, vou prestar.”
PS.: “Este depoimento tenho guardado numa fita K-7 gravada por meu avó em seu gravador.”
Livro: Guardados do Coração
Autor: Francisco Gregório Filho